A defesa da “planificação comum” em nosso programa partidário não é suficiente

Devemos, por meio de uma análise crítica das formas organizativas da economia do socialismo histórico, elaborar em detalhes as concepções de planejamento que queremos implementar na revolução brasileira.

A defesa da “planificação comum” em nosso programa partidário não é suficiente
Proun (1922-1923), de El Lissitzky.

Por Nicolas | Tribuna de Debates

Nota editorial 

Publicamos a seguinte Tribuna com a presente nota editorial para podermos já apontar alguns temas e correções importantes para nossa formulação sobre a planificação econômica, base da construção do socialismo-comunismo.

A avaliação do camarada Nicolas separa, de maneira mecânica, os “meios de planejamento” das classes sociais que os empregam conforme seus interesses objetivos. Quando ele analisa o processo da NEP, falha em mencionar que o governo soviético observa com muitíssima cautela as consequências políticas dessa escolha – consequências ligadas à manutenção de uma classe capitalista operando elementos da produção no interior da Rússia Soviética. Sua defesa de uma “economia cibernética” está correta em seus méritos técnicos, mas falha em apresentar esses méritos no que eles correspondem às relações sociais de produção. Dessa forma, por exemplo, não podemos avaliar o sucesso ou fracasso da aliança operário-camponesa no período que vai da NEP à coletivização das terras – porque isso implica entendermos o papel dos cúlaques na resistência por meio de sabotagens e boicotes à socialização dos meios de produção rurais. Também por isso, precisamos levar em consideração que usar meios “cibernéticos” para a planificação econômica não é suficiente, do ponto de vista teórico marxista-leninista: não resolve o problema da participação do proletariado no processo de construção do socialismo e aponta para uma espécie de tecnocracia na alocação de recursos. Entendemos que não é o que o camarada defende, porque entendemos que ele pressupõe um poder decisório do proletariado como comandante do meio de planejamento, mas como isso não aparece com clareza em seu texto, é preciso mencionar.

Entendemos que essa análise parcial e mecânica leva aos erros mencionados pelo camarada em relação ao Programa do Partido. O ponto 3.2 do Programa, que o camarada menciona e critica, está na parte E do programa, isso é, na parte que apresenta as medidas mais gerais a serem aplicadas quando da tomada revolucionária do poder de Estado e dos meios de produção, a revolução socialista. A introdução do ponto 3 é:

3. As medidas elencadas a seguir são, portanto, completamente dependentes do avanço da luta revolucionária. São medidas que só podem ser realizadas por um poder revolucionário, o poder organizado da classe trabalhadora e das massas populares: o Poder Popular, que ao emergir da luta de classes, confronte o poder do Estado burguês e o derrote, tornando-se o único poder e estabeleça a Ditadura do Proletariado. Esse poder só poderá se instalar mediante a derrubada do velho poder. Apenas esse poder poderá realizar todas as medidas de uma transição socialista, deixando o terreno do capitalismo, do domínio irrestrito dos mercados e do dinheiro, rumo a uma sociedade onde o trabalho social seja dividido conscientemente conforme as capacidades de cada pessoa, e em que a cada uma seja dado conforme sua real necessidade, com controle racional da utilização de recursos naturais pelos produtores livremente associados – uma sociedade comunista.

Assim, entende-se claramente que a planificação geral da economia a que o ponto 3.2 se refere está circunscrita à Ditadura do Proletariado e não entendemos que possa ser conquistado antes dela. Dessa maneira, não podemos concordar com o camarada quando ele afirma que “‘Planificação comum’ pode tanto se referir a um nacional-desenvolvimentismo por meio da planificação de mercados quanto às formas propriamente socialistas de planejamento econômico”. Isso porque, se já estamos falando do período da ditadura proletária, isso é, do governo revolucionário baseado no Poder Popular e da expropriação dos meios de produção, não se pode mais falar na burguesia como uma classe em si na sociedade brasileira. Diferentemente do que houve na Rússia Soviética, em que a NEP foi aplicada como forma de garantir o funcionamento mínimo da economia em uma sociedade que se recuperava da guerra civil tendo herdado uma série de relações econômicas semifeudais do período czarista, no Brasil temos já há mais de cem anos um capitalismo em crescente desenvolvimento, ainda que um desenvolvimento diverso dos países centrais do imperialismo, isso é, um capitalismo dependente, que ocupa um patamar intermediário no sistema imperialista. A planificação comum, no nosso caso, só pode se dar de maneira socialista e proletária.

Em resumo, o texto tem méritos que nos ajudam a aprimorar nosso debate sobre planificação econômica, mas confunde as relações de produção e as forças produtivas – e, por isso, para combater um tipo de planificação que leve ao nacional-desenvolvimentismo (que é um problema político, de classe), apresenta uma solução técnica.


A defesa da “planificação comum” em nosso programa partidário não é suficiente

O programa do nosso partido, aprovado no XVII Congresso, é, sem sombra de dúvidas, uma evolução colossal em comparação ao antigo programa do PCB. O esforço para substituir a péssima prática de reduzir o programa partidário a uma coleção de centenas de palavras de ordem, em favor de um programa realmente coeso e com encadeamento lógico consistente, é uma das maiores conquistas do XVII Congresso. Outro destaque é a inovadora separação entre os elementos de intervenção na luta de classes que defendemos realizar ainda dentro da sociedade capitalista brasileira e aqueles que só serão possíveis após a efetiva tomada do poder pelo proletariado, com a implementação de um projeto político que caminhe em direção ao socialismo-comunismo.

Todavia, nem tudo são flores. A parte que trata das ações e medidas possíveis apenas no socialismo, que, a meu ver, é a mais importante de todo o programa, carece de elementos fundamentais que reforcem o caráter verdadeiramente socialista da revolução que defendemos. Especificamente, o nosso programa afirma:

“3.2. Confisco e nacionalização de todas as instituições financeiras e grandes meios de produção, sob controle dos trabalhadores e sob uma planificação comum. A partir da base estatal, estruturar uma nova política industrial e tecnológica com o objetivo de modernizar e ampliar o parque industrial brasileiro e reorganizar a produção para uma transição energética, dando atenção também à reorganização da malha logística nacional.” - https://emdefesadocomunismo.com.br/resolucoes-do-xvii-congresso-extraordinario-do-partido-comunista-brasileiro-reconstrucao-revolucionaria/

Nenhuma outra menção à forma de planejamento ou à economia socialista é feita em nosso programa; esse é o único momento em que o tema é mencionado diretamente. O problema de afirmar que colocaremos os meios de produção sob uma “planificação comum” é que isso não é específico o suficiente para definir o caráter dessa planificação. "Planificação comum" pode tanto se referir a um nacional-desenvolvimentismo por meio da planificação de mercados quanto às formas propriamente socialistas de planejamento econômico. Isso é claramente um grave problema do nosso programa.

Vamos destrinchar um pouco os entendimentos possíveis de “planejamento econômico”.

O capitalismo, em sua etapa de desenvolvimento monopolista, carrega em si as características do modo de produção socialista. Esse é o significado de um princípio dialético, segundo o qual a suprassunção de um objeto decorre de suas contradições internas, ou em outras palavras, não da ação de elementos externos a ele. No caso do modo de produção capitalista, são os próprios elementos contraditórios de sua estrutura que propiciam sua transição para o modo de produção socialista.

Existem inúmeras contradições no modo de produção capitalista, e não cabe aqui listar todas elas, mas sim explicitar aquelas que são relevantes para o tema da planificação econômica. Um conceito útil a nós é o do “meios de planejamento”. Todo modo de produção acarreta um meio de planejamento que é mais eficaz (ou apropriado) para operar as estruturas econômicas subjacentes. Diferentemente do senso comum, toda economia de mercado opera, em graus variados, sob uma forma de planificação econômica. A expressão mais clara disso são os aparatos estatais do imperialismo voltados para a guerra, o que se convencionou chamar de complexo industrial-militar. Ou ainda, no caso brasileiro, os programas federais de incentivo à grande produção mecanizada em latifúndios — um fato amplamente discutido entre os membros do partido durante as eleições presidenciais de 2022, especialmente através da propaganda contra à Lei Kandir, que isenta os exportadores latifundiários do pagamento de qualquer tipo de imposto sobre a exportação de grãos. Todos esses elementos são expressões de um planejamento mercadológico intencional.

A principal característica do planejamento mercadológico é que ele não atua diretamente no planejamento da produção (ainda que haja inúmeras exceções desde a Primeira Guerra Mundial), mas sim por meio de mecanismos de mercado. Ou seja, oferecendo contratos estatais, crédito com baixas taxas de juros, isenções fiscais para determinados produtos e regras excepcionais para a circulação de determinadas mercadorias, entre vários outros mecanismos. Um ponto importante a ser considerado é que o planejamento mercadológico nunca supera a lógica da mercadoria. Em outras palavras, a mercadoria e seus mecanismos de produção e reprodução não apenas são preservados, mas também operam da melhor forma possível quando uma economia de mercado é devidamente planejada. Um exemplo marcante desse processo é a economia chinesa, que apresenta um crescimento sem precedentes na história da humanidade, resultado do planejamento mercadológico conduzido pelo Partido Comunista Chinês.

A contradição mais importante desse processo é a contraposição entre a anarquia produtiva da economia em geral e os processos de controle e automação da grande indústria monopolista. Se, por um lado, a economia de mercado se caracteriza pela liberdade dos grandes capitalistas em escolher, sem amarras, o que produzir e quando produzir, sem nenhuma preocupação com o arranjo produtivo mais eficiente para a sociedade em geral, e ainda operando pela lógica de tentativa e erro, dentro das fábricas há o mais absoluto controle racional da produção industrial. Os trabalhadores seguem rígidas escalas de trabalho, e a logística do chão de fábrica opera como uma grande orquestra, movendo os insumos da produção de máquina em máquina numa dança sincronizada, empregando os meios de planejamento mais eficientes possíveis por meio de programas matemáticos capazes de determinar o melhor arranjo produtivo possível. É no interior da grande indústria monopolista que nasce o meio de planejamento propriamente socialista. E é dessa contradição — de, no interior das fábricas, operar o controle racional mais eficiente possível em contraste com a ausência de controle e racionalidade quando a mercadoria sai da fábrica — que surge a possibilidade de suprassunção do modo de produção capitalista.

A conclusão que somos forçados a chegar, é que o meio de planejamento socialista é justamente a aplicação na sociedade em geral dos meios de planejamento da grande indústria monopolista capitalista.

1) Primeira suprassunção (negação): Nega-se a anarquia produtiva fruto da organização social através de mercados. Com isso, nega-se também seus efeitos deletérios, como as crises inerentes a qualquer economia de mercado. Esse processo culmina na negação da mercadoria.
2) Segunda suprassunção (conservação): Preserva-se o meio de planejamento proveniente do desenvolvimento da técnica no seio da grande indústria monopolista. Quanto à mercadoria, preserva-se, na dualidade valor-de-uso e valor-de-troca, o aspecto do valor-de-uso da mercadoria e toda a lei do valor-trabalho que cria esse valor-de-uso.
3) Terceira suprassunção (transcendência): O meio de planejamento encontrado apenas no interior da grande indústria capitalista é agora utilizado como técnica para organização de toda a produção econômica da sociedade socialista. Completa-se a suprassunção da forma mercadoria, fazendo ela deixar de existir.

Ainda para nosso benefício, podemos estudar os 73 anos de desenvolvimento dos meios de planejamento soviéticos e extrair lições dos erros e acertos desse processo de suprassunção do modo de produção capitalista a partir da trágica história soviética. Podemos observar três etapas no desenvolvimento dos meios de planejamento soviético, que, de certa forma, são um caminho que toda transição socialista tende a seguir.

Como consequência das marcas deixadas pelo processo revolucionário, os trabalhadores da revolução de Outubro herdaram o maquinário produtivo dos capitalistas e precisaram colocá-lo em funcionamento imediatamente para reconstruir a economia devastada pela guerra. O meio de planejamento empregado, portanto, foi o capitalista. Esse foi o caso da NEP soviética, implementada logo após o necessário arranjo econômico do comunismo de guerra. Somente após a recuperação do nível de desenvolvimento econômico atingido durante o período czarista é que surgiu a base material para a construção de uma economia socialista, e, consequentemente, o desenvolvimento do meio de planejamento socialista em toda a sociedade.

A partir do final da década de 1920, com a implementação do primeiro plano quinquenal, os planejadores soviéticos começaram a organizar a produção da indústria pesada por meio da alocação direta dos processos produtivos, conectando fornecedores e consumidores industriais de forma direta. Esse foi o início da implementação de um meio de planejamento socialista subótimo. A metodologia empregada era o método dos balanços materiais, no qual operadores humanos mantinham contato constante com as fábricas envolvidas no planejamento, a fim de definir as quantidades a serem produzidas, as escalas de produção e o transporte logístico necessário para a distribuição. Esse processo consistia na tentativa de encontrar um arranjo produtivo o mais eficiente possível, buscando maximizar a produção industrial com o mínimo de desperdício. Esse modelo de planejamento prevaleceu até o fim da União Soviética. As limitações desse sistema, que o tornavam subótimo, residiam no fato de que os humanos eram incapazes de lidar com grandes volumes de dados de maneira eficiente, resultando em um arranjo produtivo cada vez mais distante do ótimo à medida que a economia se tornava mais complexa. A União Soviética nunca conseguiu integrar toda a sua atividade econômica no planejamento centralizado, o que fez com que determinados setores produtivos, menos prioritários para os objetivos políticos soviéticos, continuassem operando sob a forma mercadoria.

O método dos balanços materiais era um sistema de planejamento relativamente simples, pois eliminava propositalmente os elementos desnecessários à atividade econômica presentes nas economias de mercado. Em primeiro lugar, o objetivo era calcular a capacidade produtiva de toda a indústria planejada para o ano ou quinquênio. (Vale lembrar que, devido às limitações organizacionais, apenas o setor da indústria pesada era planejado dessa forma, enquanto o restante da economia mantinha as relações de mercado do período anterior.) O cálculo considerava não apenas a produção, mas também as importações, exportações e os estoques desejados de cada tipo de produto, como aço, cimento, borracha, entre outros. Após estabelecidos esses valores, identificava-se quais produtos estariam em escassez ou em superprodução em relação aos outros setores da economia. Essas discrepâncias entre oferta e demanda eram, então, usadas para ajustar o plano, até que todas essas distorções fossem eliminadas. Esse processo era aplicado tanto para o plano anual quanto para o quinquenal, ajustando a capacidade produtiva das indústrias e a malha logística de modo a industrializar o país o mais rápido possível. Quando o plano era finalizado, ele era repartido e enviado para os diversos setores administrativos do aparato estatal soviético, responsáveis por seus respectivos ramos da indústria e do transporte.

Este método estava longe de ser perfeito, sendo justamente por isso que o meio de planejamento socialista da época era caracterizado como subótimo. O método dos balanços materiais focava na rápida industrialização, mas trazia consigo fortes limitações. Como o estado soviético não tinha capacidade organizativa para planificar toda a economia, a coexistência entre o meio de planejamento socialista subótimo da indústria pesada e o meio de planejamento capitalista do restante da economia fazia com que o dinheiro, como unidade contábil, nunca pudesse ser superado. Quando o produto industrial saía do setor planejado e entrava nos setores da economia de mercado, não era possível estabelecer uma relação apropriada entre o preço, medido em unidades monetárias, e o seu valor concreto, medido em horas de trabalho socialmente necessárias. Isso tornava particularmente problemática a troca de produtos entre a indústria pesada e o restante da economia, criando recorrentes descompassos econômicos. Isso ocorria porque os mecanismos de precificação de uma economia de mercado se baseiam na transmissão de informações sobre preços entre as unidades produtivas, elemento simplesmente ausente no meio de planejamento socialista empregado através dos balanços materiais. O Estado soviético era, então, forçado a estabelecer fortes controles de preços em seus setores de mercado, processo que frequentemente era mal conduzido por ausência de informações e provocava crises artificiais de abastecimento e distribuição. Outra característica que tornava esse processo ainda mais difícil era que a alteração de um balanço material causava um efeito cascata no planejamento, implicando necessariamente no replanejamento de centenas ou milhares de balanços materiais de diferentes setores da indústria, para que qualquer tipo de alteração do plano pudesse ser realizado. Esse processo era praticamente impossível de ser executado com rapidez suficiente por seres humanos usando apenas calculadoras, papel e telefone, o que causava grandes atrasos na adaptação dos planos sempre que se constatava a necessidade de correção dos balanços materiais.

Como consequência do desenvolvimento dos computadores digitais, na década de 1960, tornou-se possível implantar o meio de planejamento socialista ótimo. Uma rede universal de computadores, substituindo os centenas de milhares de operadores humanos envolvidos diretamente no processo de planejamento econômico, seria capaz de encontrar o arranjo econômico mais eficiente possível por meio de um programa matemático capaz de processar enormes quantidades de dados econômicos em tempo real. Esse tipo de planejamento é chamado de “ótimo” porque é capaz de identificar sempre o melhor arranjo econômico possível. Trata-se de uma evolução natural das limitações do método dos balanços materiais. Por meio dele, seria possível transicionar toda a economia soviética para o meio de planejamento socialista, pois o emprego de formas automatizadas de compartilhamento e processamento de informações econômicas torna o processo de planejamento ordens de magnitude mais eficiente. Além disso, seria possível ajustar rapidamente o planejamento, mesmo que isso implicasse no recálculo de todo o plano, graças à alta capacidade de processamento dos computadores.

“Já se tornou uma opinião geralmente aceita que em problemas complexos de planejamento e controle resolvidos por métodos matemáticos e computadores, o efeito econômico atinge aproximadamente 10-15%. (...) Não é difícil calcular que se todos os problemas fossem resolvidos utilizando métodos ótimos, se a porcentagem de poupança resultante da resolução de todos os problemas fosse aproximadamente a mesma que a dos resolvidos (e há todas as razões para acreditar que para problemas globais será muito maior), então nosso país receberá oportunidades objetivas para aumentar significativamente a taxa de crescimento econômico. Contudo, para alcançar esta situação, muito mais precisa ser feito. É claro que a transição para um planejamento e controle ótimo exigirá um aumento acentuado no trabalho computacional. Cálculos aproximados realizados no Instituto Central de Economia e Matemática da Academia de Ciências da URSS e no Instituto de Cibernética da Academia Ucraniana de Ciências mostram que, para um planejamento e gestão ideais de toda a nossa economia nacional, é necessário realizar anualmente pelo menos 10 elevado a 16 operações aritméticas em números de vários dígitos. Para sentir a enormidade deste número, basta lembrar que com métodos de contagem convencionais (não automatizados), 10 milhões de pessoas não poderão realizar mais de 10 elevado a 12 operações deste tipo num ano. Em outras palavras, para fazer a transição para métodos ideais de planejamento e gestão, o rendimento do sistema de gestão atual deve ser aumentado em pelo menos 10 mil vezes! É claro que apenas um sistema automatizado composto por vários milhares de computadores eletrônicos de alta velocidade pode resolver tal problema.” - Viktor Glushkov, 1968 -  “Problemas de organização científica da gestão da indústria socialista”

A União Soviética experimentou com esse modelo de planejamento em diversas ocasiões, mas sempre em escala reduzida. Podemos citar o seguinte exemplo para ilustrar:

“Nos últimos anos, no nosso país e no estrangeiro, começaram a ser amplamente utilizados novos meios eficazes de planejar e gerir grandes empreendimentos (...). Algumas das experiências mais emocionantes na aplicação de métodos de planejamento e gestão de rede no nosso país foram iniciadas em 1964 na Ucrânia, (...). Estas organizações elaboraram cronogramas para a construção de uma série de instalações na usina de Burshtyn e a construção do complexo de ureia na fábrica de produtos químicos de Lisichansk, que determinaram uma organização alternativa da sequência de trabalho, possíveis métodos e prazos para sua implementação. Durante vários meses, foi realizada uma experiência para gerenciar esses canteiros de obras usando métodos computacionais. Todos os dias, o Instituto de Cibernética da Academia de Ciências da RSS da Ucrânia recebia por teletipo informações dos canteiros de obras sobre o andamento das obras reais, correspondentes às posições do cronograma. Essas informações foram processadas em computador, o que resultou na identificação de “gargalos” na construção e nas reservas utilizadas para desacoplar áreas sob estresse. No mesmo dia, os resultados dos cálculos multivariados em computador foram transmitidos via teletipo aos canteiros de obras. Estes dados foram utilizados pelos gestores da construção, que, em conjunto com especialistas do Instituto de Produção da Construção e gestores dos canteiros de obras individuais, desenvolveram rapidamente medidas para garantir o mais racional progresso da construção. Tal sistema permite chamar a atenção dos construtores e entidades fornecedoras de materiais, mecanismos e equipamentos de construção para obras específicas e mais críticas, das quais realmente depende a execução de todo o complexo de obras. Como as informações sobre o andamento das obras são elaboradas diretamente pelas empreiteiras, este sistema utiliza efetivamente o conhecimento, a experiência e a conscientização de toda a equipe de construção. A aplicação prática deste método permitiu que os construtores da Usina Química de Lisichansk e da Usina Elétrica do Distrito Estadual de Burshtyn reduzissem significativamente o atraso emergente na construção e concluíssem a construção de instalações cobertas em tempo recorde. A implementação da organização por métodos de rede de computadores Mostostroy No. 1, juntamente com o Instituto de Pesquisa de Planejamento de Rede do Comitê de Construção do Estado da RSS da Ucrânia e o Instituto de Cibernética da Academia de Ciências da RSS da Ucrânia na construção da ponte do metrô através do Dnieper revelou-se muito eficaz. Atualmente, sistemas de planejamento e gerenciamento de redes estão sendo implementados na república em muitos locais importantes de construção industrial. O Comitê de Construção do Estado da RSS da Ucrânia realizou um grande trabalho organizacional e metodológico neste sentido. Os métodos de planejamento e gestão de redes não estão a ser implementados apenas na construção de grandes estruturas. Existem experiências bem sucedidas da sua utilização na criação de máquinas e equipamentos únicos, no planejamento de desenvolvimentos científicos, na realização de grandes reparações e medidas técnicas organizacionais na construção naval. No entanto, deve notar-se que os métodos de rede são apenas um dos meios eficazes de planejamento e gestão, são apenas os primeiros passos para a introdução generalizada de métodos matemáticos e de tecnologia de computação eletrônica na economia. Marx disse que a ciência só se torna verdadeiramente ciência quando consegue usar a matemática. A economia vive atualmente uma fase de matematização. É claro que devemos isto principalmente ao desenvolvimento da cibernética e da tecnologia informática eletrônica.” - Viktor Glushkov, 1968 - “Problemas de organização científica da gestão da indústria socialista”

A única tentativa de estabelecer o planejamento socialista ótimo para toda a economia soviética ficou conhecida como OGAS e teve seu financiamento rejeitado no XXIV Congresso do PCUS. De qualquer forma, a União Soviética acabou antes que o meio de planejamento socialista ótimo pudesse ser implementado em todo o território e sua capacidade de organização econômica fosse avaliada empiricamente.

Em suma, podemos resumir o desenvolvimento dos meios de planejamento na união soviética da seguinte forma:

1) Meio de planejamento capitalista: O emprego do planejamento de mercados para criação da base material para o meio de planejamento socialista.
2) Meio de planejamento socialista subótimo: O emprego dos métodos de planejamento encontrados no interior da grande indústria capitalista para a economia em geral por meio de métodos manuais de organização e controle da produção.
3) Meio de planejamento socialista ótimo: O emprego de computadores eletrônicos para o planejamento automatizado da economia por meio de programas matemáticos.

Ainda no final de sua existência, a União Soviética apresentava expressões concomitantes dos três tipos de meios de planejamento mencionados. Embora o meio de planejamento predominante fosse o socialista subótimo, ainda havia remanescentes do planejamento capitalista em determinados setores econômicos, além de diversos brotos do planejamento socialista ótimo em diferentes estágios de desenvolvimento.

O meio de planejamento socialista está intimamente ligado ao desenvolvimento das forças produtivas, pois este não é possível sem o avanço da técnica computacional digital. Isso traz certas vantagens para uma revolução brasileira no século XXI, considerando que o atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas no Brasil já inclui o uso extensivo da internet (a rede global de computadores) e de grandes supercomputadores e data centers. Glushkov afirmava que em 1968 eram necessárias 10 elevado a 16 operações aritméticas por ano para planejar toda a economia soviética. Se assumirmos que a economia brasileira contemporânea é, para fins de extrapolação, 100 vezes mais complexa que a soviética de 1968, totalizando 10 elevado a 18 operações aritméticas por ano, ainda assim estamos em tal nível de desenvolvimento da capacidade computacional que podemos calcular a economia brasileira inteira somente usando o supercomputador Tupã do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que é capaz de realizar 10 elevado a 14 operações aritméticas por segundo. Somente o supercomputador do INPE já é capaz de calcular o plano anual da economia soviética em 1 minuto e 40 segundos, e o plano anual da hipotética economia brasileira 100 vezes mais complexa em 2 horas e 46 minutos. Hoje em dia, portanto, não há limitações técnicas para a implementação universal do meio de planejamento socialista, ao contrário da realidade dos soviéticos, que precisaram desenvolver seu meio de planejamento inicialmente com base no papel e no telégrafo.

Retomando o assunto principal, podemos concluir que há diferentes interpretações sobre o que seria a "planificação comum" mencionada em nosso programa. No cenário atual de disputa política, há um oportunismo crescente que busca caracterizar como socialismo as relações econômicas capitalistas e, em nosso caso, o meio de planejamento capitalista, desvirtuando seu verdadeiro significado. Isso se manifesta na prática daqueles que defendem, de forma intencional, a ideia de que o objetivo da transição socialista seria a implementação de um planejamento capitalista. Essa postura se reflete fortemente nas defesas das formas econômicas pró-mercado, conhecidas também como "socialismo de mercado", durante a revolução.

O problema grave em nosso programa partidário é justamente esse. Precisamos deixar claro que defendemos um tipo muito específico de "planificação comum": aquela realizada por meio de computadores que matematizam toda a economia e criam mecanismos automatizados de planejamento e controle. Esse planejamento atua diretamente na alocação econômica, sem delegar essa função aos mercados. A forma mercadoria é superada quando organizamos a economia dessa maneira. Definindo nosso programa dessa forma, evitamos abrir espaço para o oportunismo que defende um capitalismo nacional-desenvolvimentista disfarçado sob uma linguagem socialista enganosa.

Não podemos nos furtar de definir que tipo de planificação defendemos, visto que temos toda a história do socialismo no século XX para ancorar nossas concepções. Seria um grande erro de nossa parte tratar a questão como se fosse um terreno virgem a ser desbravado quando a revolução chegar. Devemos, por meio de uma análise crítica das formas organizativas da economia do socialismo histórico, elaborar em detalhes as concepções de planejamento que queremos implementar na revolução brasileira.

Acredito que, dado o tom da minha exposição até agora, não seja segredo como me posiciono nessa polêmica. Para fins de clareza, prefiro definir minha posição como uma defesa da "economia cibernética", um atalho semântico para expressar uma concepção de transição socialista que visa especificamente superar a mercadoria e organizar a economia por meio de modelos matemáticos e mecanismos automatizados de controle e planejamento, como foi o caso do OGAS na União Soviética.

De qualquer forma, não estamos em época congressual, e, portanto, este não é o momento para advogar pela alteração do programa de nosso partido. Assim, é imprescindível concentrarmos esforços na sistematização de um entendimento comum entre os membros do partido sobre os elementos fundamentais da ciência econômica proletária, de modo a possibilitar que o militante se eduque sobre essas diferentes concepções econômicas. Se o que foi aprovado no congresso se deu dessa forma, não por convicção em uma tese oportunista, mas por mero desconhecimento, isso reflete um baixo nível de formação econômica entre os camaradas. Ainda é muito cedo para fazermos análises sobre nosso sistema de formação, visto que ele ainda não existe de forma efetiva. Portanto, sugiro apenas que os camaradas responsáveis pela definição do conteúdo do sistema de formação deem ênfase aos estudos sobre economia. Ao nosso Órgão Central, que opera o site do EDC, gostaria de sugerir a publicação na biblioteca marxista-leninista de textos sobre economia.

Aos camaradas que discordam do meu raciocínio ou que desejam apontar eventuais erros ou limitações em meu texto, convido-os a escrever respostas para que possamos promover uma polêmica partidária qualificada.

Abraços revolucionários.